quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

O sonho sublime de um ex-escravo

Primeiro autor a se admitir negro, Luiz Gama lutou na Justiça e na imprensa pela libertação de cativos Ligia Fonseca Ferreira Charge publicada no semanário satírico Revista Ilustrada em agosto de 1888, apontando as transformações no corpo e na mnente dos recém-libertos. (Fundação Biblioteca Nacional) O ex-escravo Luiz Gama, que se tornou abolicionista e republicano – o único regime, segundo ele, capaz de garantir liberdade, igualdade e fraternidade entre os homens – foi uma das personalidades negras mais notáveis do século XIX. Em 1869, quase cem anos antes de Martin Luther King, o poeta, jornalista e advogado se antecipou ao norte-americano e declarou igualmente ter um sonho, um “sonho sublime”, que transparecia também um desejo de igualdade: “as terras do Cruzeiro, sem reis e sem escravos”. Em 1880, dois anos antes de morrer, Gama evocou, em carta ao amigo Lúcio de Mendonça, fatos relevantes de sua vida. Sua genealogia reproduzia a matriz afro-luso-brasileira de boa parte do país. Nascido em 21 de junho de 1830 em Salvador, era filho de uma africana livre, a “altiva” Luiza Mahin, muitas vezes presa por envolver-se em revoltas negras que, segundo ele, “não tiveram efeito”, mas na época agitaram a Bahia. Gama nunca revelou o nome do pai, fidalgo de origem portuguesa, protagonista de um episódio dramático: vendeu o próprio filho de 10 anos como escravo. Nesta condição o futuro abolicionista chegou à cidade de São Paulo, onde residiu até o fim da vida. Aos 17 anos, obteve as provas de ter nascido livre, aprendeu a ler e a escrever, iniciando sua extraordinária aventura com a palavra escrita, universo quase exclusivo de homens livres e brancos, no qual se consagraria 12 anos depois. Em 1859, Gama publica em São Paulo seu único livro, Primeiras trovas burlescas (PTB), coletânea de poemas satíricos nos quais denuncia os paradoxos políticos, éticos e raciais da sociedade brasileira. Reeditada no Rio de Janeiro em 1861, a novidade editorial e literáriaocorre num Brasil escravocrata, independente há menos de 40 anos e em pleno período romântico, durante o qual o negro-escravo despontou como tema na poesia, como no monólogo “Saudades do Escravo” (1850), de José Bonifácio. Também apareceu como personagem no teatro – como no drama Calabar (1858), de Agrário de Meneses, primeira peça brasileira a apresentar um herói negro – e no romance, como o atesta Maria ou a Menina Roubada (1852), de Teixeira e Sousa. Neste contexto, Gama fincou uma voz inaugural, a do primeiro autor negro que se enuncia enquanto tal, figura até então ausente da literatura brasileira. A questão racial aparece em vários poemas. Em “Quem sou eu”, também conhecido como “Bodarrada” (uma reunião de mestiços), o poeta lança: “Se negro sou, ou sou bode,/ Pouco importa./ O que isto pode?/ Bodes há de toda a casta,/ Pois que a espécie é muito vasta”. Nesses versos provocativos, ele rejeita o sentido negativo de “negro”, bem como o da pejorativa palavra “bode”, aplicada aos mulatos de pele escura. Em vez de insulto, são recebidos como elogio, em tranquila indiferença, pois naquele extenso corpo social, irrigado pelo sangue africano, à imagem do poeta, “tudo é bodarrada!”. Tinha-se ali um retrato do Brasil, comprovado pelo Censo de 1872, no qual os escravos correspondiam a 15% de uma população de 10 milhões de habitantes, dos quais 58% se declararam pardos ou pretos, e 38%, brancos. A população do país só veria sua fisionomia alterada a partir dos anos 1880, com a chegada da imigração europeia destinada a substituir a mão de obra escrava e, sobretudo, a embranquecer o país. Gama condenou igualmente os “mulatos de cor esbranquiçada” que, ao ascenderem socialmente, “desprezam a vovó que é preta-mina” e “esquecem os negrinhos seus patrícios”. Com lucidez e ironia, os versos de Gama ecoavam o preconceito reinante (“Ciências e Letras/ Não são para ti/ Pretinho da Costa/ Não é gente aqui”), antecipando o grito angustioso de Cruz e Sousa (“Artista! Pode lá isso ser se tu és d’África!”). Na linha da sátira moralista, as PTB expõem os males congênitos da sociedade imperial, aliás, perpetuados sob a República a que o poeta, morto em 1882, não assistiu: venalidade, corrupção, impunidade. É o que se lê no atualíssimo poema “Sortimento de gorras para a gente do grande tom”: Se a justiça, por ter olhos vendados, É vendida, por certos Magistrados, Que o pudor aferrando na gaveta, Sustentam — que o Direito é pura peta; E se os altos poderes sociais, Toleram estas cenas imorais; Se não mente o rifão, já mui sabido: — Ladrão que muito furta é protegido — É que o sábio, no Brasil, só quer lambança, Onde possa empantufar a larga pança! A partir dos anos 1860, Gama dedicou-se exclusivamente ao jornalismo e à militância abolicionista. Ajudou a criar os primeiros periódicos ilustrados de São Paulo (Diabo Coxo, 1864;Cabrião,1866) ao lado do cartunista Ângelo Agostini. Colaborou em importantes jornais, como o Radical Paulistano, órgão do Partido Liberal Radical, o Correio Paulistano e A Província de São Paulo, e fundou o semanário político e satírico O Polichinelo (1876). Escreveu para órgãos da Corte, como a Gazeta da Tarde, na qual, entre 1880 e 1882, somou sua voz à dos abolicionistas negros Ferreira de Menezes, André Rebouças e José do Patrocínio. Exímio comunicador, dirigia-se do escravo ao Imperador. Nenhum dos grandes temas nacionais escapou à pena audaz de Gama: Guerra do Paraguai, Questão Religiosa, abolição, monarquia e república. A imprensa foi fundamental para seu ativismo, bem como os laços com a maçonaria, que o apoiou na missão de libertar e garantir os direitos dos escravos. Em seus artigos, Gama demonstrava como os próprios representantes do Direito violavam as leis em benefício da ordem escravista. No Radical Paulistano, de 1869 a 1870, analisava sentenças e expunha os erros cometidos por juízes corruptos e prevaricadores. Além de apontar “o modo extravagante [como] se administra a justiça no Brasil”, o exercício permitia ao advogado autodidata exibir sua cultura jurídica, vendo-se obrigado a dar “proveitosa lição de direito” aos doutores, embora não fosse ele graduado em jurisprudência, nem tivesse “frequentado escolas”. O abolicionismo paulista ganhou contornos específicos graças a estratégias inovadoras adotadas por Gama e seu grupo. Uma delas consistiu em desenterrar a lei de 7 de novembro de 1831, que extinguia o tráfico negreiro, para libertar africanos “ilegalmente escravizados”, com a anuência de autoridades que, aos olhos de Gama, participavam de um crime. Certa vez, indignado pela não aplicação daquela lei num processo de que se encarregava, o advogado engalfinhou-se com o juiz Dr. Rego Freitas. Este lhe negara o depósito judicial de um africano, comprovadamente chegado ao Brasil após 1831. Os leitores paulistanosacompanharam a briga pelos jornais. Gama não se inti¬midou perante o juiz e, irritado, esbravejou, “perante o país inteiro”, instando-o a “cingir-se à lei” e a “cumprir seu dever”, para o que era “pago com o suor do povo, que é o ouro da Nação”. Atitudes como esta lhe renderam graves represálias, mas a partir daí sua projeção pública só aumentou. Escravos de São Paulo e de outras províncias recorriam ao advogado, que anunciava em alto e bom som: “Eu advogo de graça, por dedicação sincera à causa dos desgraçados; não pretendo lucros, não temo violências”.Ainda na carta a Lúcio de Mendonça, o abolicionista fez o balanço de seu abnegado serviço: “[no foro e na tribuna ganho] o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que em número superior a 500 tenho arrancado às garras do crime”. Por suas origens, conquistas e valores, Gama surge diante de nossos olhos como uma síntese – na cor, no coração e na mente – de grande parte do povo brasileiro que conserva características e anseios semelhantes aos seus. Destacou-se como agente de mudança num período em que questões importantes convulsionavam as instituições e a própria identidade do Brasil. Em seus últimos anos, dedicou-se somente a libertar pessoas “ilegalmente escravizadas”. Mesmo enfermo, saía carregado de casa para atender a seus clientes. Faleceu em 24 de agosto de 1882. A vida de Gama norteou-se por princípios que lhe deram o conforto de proclamar: “Sou abolicionista sem reservas; sou cidadão; creio ter cumprido meu dever”. Ligia Fonseca Ferreira é professora da Universidade Federal de São Paulo e autora de Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011). Cartas sobre a vida e anseios Na Biblioteca Nacional encontram-se duas preciosas cartas de Luiz Gama. A primeira, datada de 26 de novembro de 1870, destinava-se a José Carlos Rodrigues, que naquele ano fundara em Nova York o Novo Mundo, primeiro periódico em português publicado nos Estados Unidos, país pelo qual Gama nutria particular admiração por considerá-lo o “farol da democracia universal”. O remetente dá notícias sobre a fundação da Loja América e sobre a mobilização republicana na capital paulista, dias antes de ser publicado o Manifesto Republicano (em 3 de dezembro de 1870) no Rio de Janeiro. A segunda carta foi enviada em 25 de julho de 1880 a Lúcio de Mendonça, um dos futuros fundadores da Academia Brasileira de Letras. Gama revela fatos inéditos de sua vida, da infância na Bahia ao final dos anos 1860. Trata-se de um dos poucos relatos da vida de um ex-escravo no Brasil. Na história dos negros e das letras brasileiras, não há equivalentes das memórias de escravos, tão frequentes nos Estados Unidos. A carta a Lúcio de Mendonça, que serviria de base para um ensaio biográfico sobre o amigo, é fundamental para a compreensão de como Gama adquiriu uma voz influente nos movimentos abolicionista e republicano. Saiba mais AZEVEDO, Elciene de. Orfeu de Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas: Editora da Unicamp, 1998. FERREIRA, Gabriela Nunes & MOTA, Carlos Guilherme (coords.).Os juristas na formação do Estado-Nação brasileiro (1850-1930). São Paulo: Saraiva/ Fundação Getúlio Vargas, 2010. GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas e outros poemas. Introdução e organização de Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Fonte: www.revistadehistoria.com.br

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